O jazz pode ter fincado seu pé nos Estados Unidos, mas, atualmente, parece ter se transportado para a Europa, pelo menos no que se diz respeito à inovação, produtividade e audiência. Há pelo menos uns 20 anos caiu o Muro de Berlim que separava o que era jazz e o que não era. Pouco importa se rock, música árabe, música indiana, brasileira, europeia ou asiática estão no meio. Se reconhece uma ponta que seja da essência jazzística, ora, é jazz, porque o gênero nunca teve compromisso arbitrário algum desde o final do século XIX, quando passou a se desenvolver.
O finlandês Raoul Björkenheim não é bem um jazzista no sentido estrito, e para isso há alguns motivos. Primeiramente, ele é guitarrista e transita do rock à música sinfônica (chegou a montar um projeto para 38 guitarras e 4 baterias, chamado Apocalypso). Ele admira Miles Davis e Yamandú Costa e aprendeu bastante ao ouvir fusion, música carnática e free-jazz.
Em 2014 ele lançou o primeiro disco com o grupo eCsTaSy, homônimo. Foi lançado pelo selo Cuneiform e foi indicado por Melhor Álbum de Jazz ao Emma Prize, o Grammy finlandês (o disco também entrou na lista dos melhores discos internacionais de 2014 pelo Na Mira).
O disco condensa influências que passam por free-jazz, rock’n roll e, principalmente, hard bop. “Minha música é difícil de categorizar e, portanto, de difícil acesso mercadológico”, diz Raoul em entrevista exclusiva ao Na Mira. Mas, tratando-se do eCsTaSy, é uma música “bem acessível”.
O fato de ser escandinavo só dá mais vazão aos argumentos que o coloca no panteão criativo do jazz atual. eCsTaSy é enérgico como a música pop que você costuma ouvir em casa, só que com raro grau de técnica e precisão musical. “Ouço comentários de pessoas que não são afeitas ao jazz que dizem adorar nossos concertos”.
Na conversa, o finlandês revela o que aprendeu com o guru do free-jazz finlandês, Edward Vesala, menciona os numerosos e variados projetos que toca, explica o forte diálogo que conseguiu estabelecer com o grupo, de integrantes tão jovens como seus alunos (com Jori Huhtala no contrabaixo, Pauli Lyytinen no sax tenor e Markku Ounaskari na bateria).
Tem, também, sua longa lista de influências, as discussões sobre a relevância do jazz na atualidade e seu gosto pela música brasileira.
Após trabalhar com tantos projetos, quando surgiu o momento-chave para a criação do eCsTaSy?
Desde 1976 investi muito tempo lecionando, e desde os anos 80 dou aulas na Sibelius Academy, em Helsinki. Lá eu estava à frente de um grupo focado em improvisação e a maioria dos grandes instrumentistas finlandeses de hoje, de alguma forma, integram algum grupo musical. Tem sido uma de minhas glórias acompanhar o florescimento de diversos talentos diante de meus olhos e, entre esses músicos, estavam Jori Huhtala e Pauli Lyytinen, em 2010.
Fui assistir aos seus shows e, num determinado momento, os convidei para tocar comigo. Bom, eles demonstraram tanta energia e uma musicalidade tão grandiosa que se reuniram para tocarem juntos, então foi natural minha sugestão para formarmos um grupo. Nossa primeira turnê oficial foi na Tampere Jazz Happening 2011, e desde então temos nos aproximado mais e mais musicalmente, às vezes como um ESP [sigla em inglês para percepção extrassensorial].
Desde os anos 1980 você tocou com diversos músicos – sendo o mais notável deles Edward Vesala, o reconhecido guru do free-jazz finlandês. É um pouco difícil para os neófitos (inclusive o Na Mira) entenderem como você opera com tantos projetos: Krakatau, Helsinski Symphony Orchestra, UMO, entre outros, embora parte deles seja passado. No primeiro disco do eCsTaSy, como você combina tais influências e experiências? É sempre uma novidade?
Uma das coisas que mais sinto falta no jazz de hoje é a verdadeira improvisação, não apenas tocar uma nota e suas variáveis. Fui fortemente influenciado por pessoas como Don Cherry, Sam Rivers, Dave Holland e Barry Altschul, The Art Ensemble of Chicago, Charles Gayle com William Parker e Rashied Ali, o trio Air, e obviamente Vesala com Tomasz Stanko, músicos que improvisam da tabula rasa, e essas experiências foram tão importantes pra mim, que decidi tornar a improvisação sempre algo em alto padrão.
Com o Scorch Trio sempre improvisávamos tudo, o que me oferecia grande liberdade, mas me mantive cauteloso diante da responsabilidade de manter a música coerente. Com o eCsTaSy, gosto da ideia de combinar notas e improviso, algo que fazia bastante com o Krakatau, e às vezes é difícil dizer onde um termina e o outro começa.
A primeira coisa que tenho a dizer sobre o eCsTaSy é que soa bem furioso! E não apenas por conta da guitarra. Canções como “Sos” revelam as técnicas incríveis de Pauli Lyytinen e a pulsação do baixo de Jori Huhtala em “No Delay” não só impressiona, mas sustenta a estrutura da canção. Como estes músicos maravilhosos chegaram ao eCsTaSy? É possível controlá-los?
No começo, acredito que estes caras se sentiam como ‘integrantes’ e consequentemente sempre me mostraram respeito, mas conforme fomos tocando juntos, percebi que não tinha que desempenhar o papel de ‘liderança’ tanto assim. Acredito fortemente na aproximação Miles Davis, em que você demanda apenas o melhor de cada instrumentista investindo seus melhores esforços e dando a eles a liberdade para criar novas formas e ideias. Assim, a música permanece viva e repleta de energia.
Minha experiência em tocar na banda de Vesala era verdadeiramente o oposto; ele impunha estrita limitação sobre o que era permitido, mas em contrapartida eu reconhecia que ele tinha um som tão claro em sua cabeça que não queria sacrificá-lo apenas para deixar os músicos mais confortáveis. Aprendi bastante sobre música durante esses anos e acredito que também possuo algumas ‘regras’ sobre minhas músicas, especialmente em relação à bateria.
Além da inegável influência do free-jazz em sua música, o rock também é bem evidente. Há uma conexão entre o rock progressivo e no-wave, especialmente em ‘Subterranean Samba”, que me lembrou bastante o trabalho de Arto Lindsay. Também imagino Bill Frisell habitando a mesma órbita sonora. Estou certo? Como você descreveria o som do eCsTaSy?
Sou totalmente eclético em meus gostos pessoais, como se tivesse apreciando uma culinária musical. Enquanto te escrevo, estou ouvindo “Standing Up”, do Jethro Tull, o primeiro LP de rock que comprei. Através de Frank Zappa, descobri Edgar Varese, e pelo som de John McLaughlin descobri a música da Índia. Por meio de Chick Corea conheci Bartok Bela, e a lista continua por mais algumas páginas.
Costumo ouvir “Vingt Regards sur l’Enfant Jesus”, de Messiaen, e às vezes gosto de soprar a poeira de minha mobília para ouvir Meshuggah, daqui a pouco provavelmente colocarei “Focus”, de Stan Getz, pra tocar… Meus parceiros na banda também possuem listas ecléticas e trazemos todas essas influências à música. Nunca pensei no free-jazz como um gênero em particular, mas simplesmente como a licença artística para improvisar ao máximo com o objetivo principal de conectar um músico ao outro, assim como se conectar com a audiência. Espero que o eCsTaSy soe sempre surpreendente e colorido.
Entre 2001 e 2008 você morou em Nova York, e depois retornou para a Finlândia. Claro que sua música seria impactada. Neste exato momento, você se sente mais preparado para compor? Como eCsTaSy reflete isso?
Para mim, tocar guitarra é, na maior parte das vezes, improvisar, como se estivesse pronunciando alto meus pensamentos. A ponte entre meus ouvidos e meus dedos devem constantemente estar em forma. Minha técnica de tocar deve sempre se manter fluida. Além de tocar guitarra, componho e gravo minhas ideias e, vez ou outra, tenho a oportunidade de compor para outros instrumentos.
Em 2008, minha última peça para a Orquestra Sinfônica, “Afterwards”, foi tocada em Tampere. Essa orquestração demandou muito esforço, e depois de completa decidi investir mais tempo escrevendo para minhas próprias bandas, para focar bem nos tempos 2 e 4, que são essenciais.
Atualmente tenho duas grandes bandas que me ajudam a desenvolver como compositor (sendo a outra a Triad, com Ilmari Heikinheimo na bateria e Ville Rauhala no contrabaixo). Triad tem um senso roqueiro bem mais forte. Em 2016, fui comissionado para escrever a uma orquestra de câmara e planejo formar um quinteto com guitarra Dobro e um quarteto de cordas, para 2017.
Nestes últimos anos o jazz escandinavo se desenvolveu a ponto de, em minha opinião, manter-se como um dos poucos subgêneros que ainda preserva tanto uma audiência jovem, quanto adulta. Sendo parte dessa cena, como você analisa o jazz hoje, tendo em vista as possibilidades musicais e o público? Seria o eCsTaSy um grupo inovador nesse sentido?
Durante toda a minha vida tentei criar música inovadora. Já chegou a ouvir minha peça para 38 guitarras e 4 baterias chamada Apocalypso? O que faço não é puramente jazz, nem puramente rock. Minha música é difícil de categorizar e, portanto, de difícil acesso mercadológico.
No entanto, acredito que o eCsTaSy faz uma música bem acessível. O público mais jovem pode se identificar com a alta energia que geramos, e os mais velhos podem encontrar as referências de nossos gostos musicais ecléticos. Ouço comentários de pessoas que não são afeitas ao jazz que dizem adorar nossos concertos.
O mercado musical está passando por tempos muito difíceis e agora há uma recessão econômica na Europa, com menos dinheiro destinado à cultura. Paradoxalmente, parece que a música ao vivo irá desempenhar um papel ainda mais importante no futuro. As gerações mais jovens estão redescobrindo o jazz, então, tenho grandes esperanças para a música.
É fácil para você trazer toda a fúria do som do disco para os palcos? Como vão os shows?
Quando gravamos o álbum, gastamos muito tempo aperfeiçoando o som, encaixando pequenos detalhes aqui e ali e os estúdios em geral têm a tendência de serem mais cuidadosos com os músicos que os palcos. Para nossa sorte, nós treinamos para capturar um pouco desse som furioso em nossa gravação e posso garantir a você que nossos shows são ainda mais furiosos.Recentemente, fizemos uma turnê na França e o público ficou bastante impressionado.
Li que você já está trabalhando no segundo álbum do eCsTaSy, é verdade?
Sim, ficamos três dias em estúdio assim que retornamos da França e planejamos completar as gravações em mais dois dias tocando, além de deixar três dias para a mixagem. Gastar muito tempo e dinheiro no estúdio não faz nenhum sentido no quesito mercadológico, mas sinto fortemente que o próximo disco será o melhor que poderemos fazer, ainda mais furioso e mais bonito.
Já recebeu algum convite para tocar no Brasil? Conhece algum músico brasileiro?
Nunca fui ao Brasil, mas nosso saxofonista Pauli já, e ele fala o Português também. Me lembro de ouvir bossa nova nos anos 1960 no gramofone de minha mãe e comecei a tocar e cantar canções clássicas de Tom Jobim quando tinha mais ou menos 20 anos. Os ritmos africanos sempre foram inspiradores, especialmente o m’Balax de Senegal, o guauanco de Cuba e os ritmos baianos no Brasil.
Assisti recentemente a um documentário feito pelo diretor finlandês Mika Kaurismäki sobre música brasileira, incluindo a música da Bahia e o choro, onde descobri a maravilhosa técnica de Yamandú Costa. Espero vê-lo tocar ao vivo qualquer dia. Então, sim, adoro o som da música brasileira!